Até parece que nasci sabendo ler e escrever, não tenho registro de momentos como aprendiz, livros, cartilhas, cantigas, histórias que ouvi, nada. Sinto um estranho incômodo, vasculho minhas memórias em busca de vestígios, resquícios...
Ainda antes de ir à escola, fui ajudante de uma prima, Vera, que dava aulas particulares para crianças no fundo de casa, como ajudante tinha a incumbência de auxiliar os pequenos: enquanto ela dirigia a tarefa a todos, pegava na mão dos que tinham mais dificuldades, explicava o que eles não entendiam, escrevia letras ou palavras para eles copiarem... Minha prima me elogiava...
No primeiro ano escolar, não guardo o semblante, nem o nome da professora... Um dia, já durante as férias, fui com minha mãe pedir a transferência, ela chegou-se a nós, tentou persuadir minha mãe da mudança, sem êxito, e demonstrou muito pesar pela minha saída da escola. Pegou-me pela mão e levou-me onde seria a sala do segundo ano, ela seria a professora da turma, com os mesmos alunos do ano anterior. Mostrou-me a sala, como propaganda do que seria aquele ano, os mesmos colegas, a mesma professora, com os alunos que ela fizera questão de continuar...
Ela tinha mandado pintar a sala com personagens infantis, conhecidos, coloridos, fantásticos, a sala estava organizada, com carteiras coloridas, cartazes nas paredes, tudo, novinho em folha. Já preparada para receber os antigos/novos alunos... Observei tudo com um aperto no peito, e ela segurou a minha mão o tempo todo, levou-me de volta a minha mãe, e com lágrimas nos olhos, demonstrou tristeza por eu não ficar, em ver incompleta a turma que escolhera... Lembro que era moça e bonita, sem detalhes, só isso. Saí dali com uma emoção contraditória, alegre por sentir o carinho da professora, triste, porque não faria parte de uma turma tão especial, querida, sonhada, esperada, abraçada pela professora.
Depois disso, guardo ainda outras pequenas lembranças de professoras (que lembro o rosto, e também o nome), mas o que mais marcou foram traumas que algumas deixaram no meu pequeno coração indefeso.
No segundo ano, ensinei minha irmã mais nova a ler e escrever, lembro do dia em que ela leu a primeira palavra, eu saí correndo, com o caderno nas mãos, puxando minha irmã pelo braço, aos berros, “mãe, mãe, vem ver, a Helia, está lendo!” Depois foi a vez do meu irmão caçula, o mesmo processo, a mesma emoção... Fazia isso por pura intuição, por gosto mesmo, era de brincadeira, quase sem querer. Se existe dom em ser professora, eu acho que tinha o dom.
No 3° ano, Evangelista, este era o nome dela, que não tinha nada a ver com o nome. Ela fazia distinção entre os alunos, sem preocupação em disfarçar. Eu já não apreciava muito o meu nome, depois daquele fatídico dia então... A professora EVANGELISTA perguntou se meu nome tinha acento, eu respondi que não, “então você não se chama Édna e sim “Êdena”, todos riram e eu a odiei naquele momento, odiei meu nome, odiei meus colegas, odiei àquela escola, até a cidade... Queria desaparecer... Anos mais tarde, numa doce ironia, descobri que meu nome tinha acento.
Foram os primeiros textos que decorei, “A sereizinha”, “O saci que queria ter mãe”. Não foi porque me apaixonei pelas histórias, apesar de gostar delas, tampouco por ela ter contado ou lido muitas vezes, copiávamos os textos sempre, continuamente, incansavelmente. Algumas colegas usavam canetas coloridas, variando as cores de trecho em trecho, as minhas cópias sempre foram azul no branco, por muito tempo minha vida ia ser assim: azul no branco. As estórias se encontravam no final do livro, que era colorido, na horizontal, com fragmentos de textos gostosos de ler. Quando terminávamos de entregar, mensalmente, ela pedia novamente para começarmos a copiar, com que objetivo, não sei até hoje. Acho que era para nos ocuparmos em casa, sempre teríamos o que fazer...
Outra vez ela organizou uma festinha, nós levamos os comes e bebes, levei um prato de coxinhas, a turma toda levou muita coisa, salgadinhos, doces, bolos recheados, ficou uma mesa linda! Fizemos brincadeiras, a professora nos serviu umas bolachinhas e nos dispensou, ficamos em volta da mesa, sem entender... Fiquei pensativa, tentando compreender o estava acontecendo, com o olhar perdido no espaço... De repente, ela olhou para mim e perguntou o que estava acontecendo, se eu estava com tanta fome, podia comer! Disse num tom áspero, agressivo, enchi os olhos de lágrimas, e fazendo que não com a cabeça, sai cabisbaixa, sob olhares e risos da sala e da professora Evangelista...
Na 4ª série, tive uma professora carinhosa e tranquila, que muitas lembranças suaves deixou no meu peito, era “leiga”, mas não era leiga em amar, encantar, fazia tudo com carinho, era muito simples, um pouco gorda... Mas uma vez chamou-me de “micuim”, devido ao meu tamanho, desproporcional ao das outras meninas da sala, já exibindo protuberâncias de seios e outros vestígios de puberdade. Entretanto, o que mais me marcou foram as músicas que cantávamos, as brincadeiras, as gincanas, as apresentações nas aulas da professora Nadália.
No reino perdido do Beleléu, de Maria Heloísa Penteado, foi um dos livros infantis que marcaram minha imaginação pueril, enredo envolvente, aventura, gravuras interessantes, com traços infantis, interativas, tudo que uma criança precisa, espera e quer num livro infantil, lembro que o li umas três vezes seguida, fascinada pela leitura. No decorrer da vida, e até hoje faz parte, livro de categoria vip, da minha experiência leitora. Li para muitas turmas, de alfabetização, de quinta, sexta série. Depois parti para a série vagalume, como o mesmo nome diz “série”, li muitos, um puxava o outro...
Ligia foi uma professora delicada, muito bonita, sensível, que me valorizou com seu jeito meigo, dava redações para as 5ª séries e escolhia a melhor, divulgava para a escola, fez crescer minha autoestima. Várias vezes minhas redações foram as melhores, mas nunca esqueço de uma, que pedia para descrevermos nosso mundo ideal, soltei a imaginação, que era a única coisa verdadeiramente minha. Meu irmão reclamou que ela leu minha redação para as outras turmas – ele estudava em outra turma da 5ª série – disse em tom muito jocoso que a professora “puxava o meu saco”.
Esta valorização eu senti também em casa, com meu pai, chamava-me para ler contratos para grupos de homens em seus negócios. Exibia-me como “inteligente”, que sabia ler muito bem, tinha a letra bonita. Eu me enchia de mim mesma, embriagada com aquela doce sensação de ser importante, de ter capacidades “especiais”, era a do meio de sete irmãos, tendo três mais velhos do que eu, minha irmã mais velha e dois irmãos.
Sempre gostei de ler, ficaram gravados as sensações dos dias em que eu recebia os livros didáticos na escola, sempre pública, como eu amava quando eles eram novos, com aquele cheiro de novo... pegava-os, cheirava-os, olhava os detalhes da capa, entrecapa, lia detalhes...
Especial era o de português, pra mim não existia mais aula, nem a professora, nem os colegas, só eu e o livro, com aquele cheiro de novidades, histórias, poesias, aventuras... Olhava as gravuras, folheava, lia os títulos, escolhia um texto, depois outro, até ler o último, e voltava a ler os que tinha mais gostado, alheia a tudo que acontecia a minha volta, se as professoras percebiam, se achavam ruim, nunca disseram, eu nunca soube.
Na adolescência eu lia tudo: gibis, fotonovelas, romances água-com-açúcar, que era o que circulava com facilidade entre as garotas... Perdia a noção de tudo nos romances, tempo, espaço, eu era a mocinha, viajava, mudava, sofria, brigava, era feliz... Esquecia-me das minhas tarefas domésticas, lia escondido, à luz de velas (quase debaixo da cama para minha mãe não perceber), até altas horas da noite, simplesmente não conseguia parar, quando estava perto do final, demorava, relia os capítulos que antecediam o final, era uma doce punição. No mundo real, era reprimida, tinha dificuldades para fazer amigos, minha mãe me flagrava lendo entre uma atividade doméstica, rasgava, queimava meus romances, sempre emprestados, deixando muitas mágoas e preocupações de como devolvê-los para suas donas.
Foi nessa época que conheci duas professoras solteiras, que foram morar vizinhas da nossa casa, elas pediam para eu dar uma limpadela na casa delas, lavar a louça, fazer diário escolar... Fomos ficando amigas, elas começaram a emprestar-me alguns livros de literatura: “As pupilas do Senhor Reitor”, “A viuvinha”, “Sete minutos”, “A pata da gazela”...
Continuei então meu caminho pelo prazer de ler, que trago até hoje e que sempre foi um desafio na minha vida, no meu trabalho, fazer meus alunos gostarem de ler. Sempre será um desafio, um desafio danado de bom, que me deixa leve, solta, esperançosa, pois sempre terá uma criança com os ouvidos atentos e os olhos curiosos, vibrantes, esperando, precisando, pedindo “conta outra vez”, “lê outra vez”...
Édna Rodrigues de S. Brugnoli
Ainda antes de ir à escola, fui ajudante de uma prima, Vera, que dava aulas particulares para crianças no fundo de casa, como ajudante tinha a incumbência de auxiliar os pequenos: enquanto ela dirigia a tarefa a todos, pegava na mão dos que tinham mais dificuldades, explicava o que eles não entendiam, escrevia letras ou palavras para eles copiarem... Minha prima me elogiava...
No primeiro ano escolar, não guardo o semblante, nem o nome da professora... Um dia, já durante as férias, fui com minha mãe pedir a transferência, ela chegou-se a nós, tentou persuadir minha mãe da mudança, sem êxito, e demonstrou muito pesar pela minha saída da escola. Pegou-me pela mão e levou-me onde seria a sala do segundo ano, ela seria a professora da turma, com os mesmos alunos do ano anterior. Mostrou-me a sala, como propaganda do que seria aquele ano, os mesmos colegas, a mesma professora, com os alunos que ela fizera questão de continuar...
Ela tinha mandado pintar a sala com personagens infantis, conhecidos, coloridos, fantásticos, a sala estava organizada, com carteiras coloridas, cartazes nas paredes, tudo, novinho em folha. Já preparada para receber os antigos/novos alunos... Observei tudo com um aperto no peito, e ela segurou a minha mão o tempo todo, levou-me de volta a minha mãe, e com lágrimas nos olhos, demonstrou tristeza por eu não ficar, em ver incompleta a turma que escolhera... Lembro que era moça e bonita, sem detalhes, só isso. Saí dali com uma emoção contraditória, alegre por sentir o carinho da professora, triste, porque não faria parte de uma turma tão especial, querida, sonhada, esperada, abraçada pela professora.
Depois disso, guardo ainda outras pequenas lembranças de professoras (que lembro o rosto, e também o nome), mas o que mais marcou foram traumas que algumas deixaram no meu pequeno coração indefeso.
No segundo ano, ensinei minha irmã mais nova a ler e escrever, lembro do dia em que ela leu a primeira palavra, eu saí correndo, com o caderno nas mãos, puxando minha irmã pelo braço, aos berros, “mãe, mãe, vem ver, a Helia, está lendo!” Depois foi a vez do meu irmão caçula, o mesmo processo, a mesma emoção... Fazia isso por pura intuição, por gosto mesmo, era de brincadeira, quase sem querer. Se existe dom em ser professora, eu acho que tinha o dom.
No 3° ano, Evangelista, este era o nome dela, que não tinha nada a ver com o nome. Ela fazia distinção entre os alunos, sem preocupação em disfarçar. Eu já não apreciava muito o meu nome, depois daquele fatídico dia então... A professora EVANGELISTA perguntou se meu nome tinha acento, eu respondi que não, “então você não se chama Édna e sim “Êdena”, todos riram e eu a odiei naquele momento, odiei meu nome, odiei meus colegas, odiei àquela escola, até a cidade... Queria desaparecer... Anos mais tarde, numa doce ironia, descobri que meu nome tinha acento.
Foram os primeiros textos que decorei, “A sereizinha”, “O saci que queria ter mãe”. Não foi porque me apaixonei pelas histórias, apesar de gostar delas, tampouco por ela ter contado ou lido muitas vezes, copiávamos os textos sempre, continuamente, incansavelmente. Algumas colegas usavam canetas coloridas, variando as cores de trecho em trecho, as minhas cópias sempre foram azul no branco, por muito tempo minha vida ia ser assim: azul no branco. As estórias se encontravam no final do livro, que era colorido, na horizontal, com fragmentos de textos gostosos de ler. Quando terminávamos de entregar, mensalmente, ela pedia novamente para começarmos a copiar, com que objetivo, não sei até hoje. Acho que era para nos ocuparmos em casa, sempre teríamos o que fazer...
Outra vez ela organizou uma festinha, nós levamos os comes e bebes, levei um prato de coxinhas, a turma toda levou muita coisa, salgadinhos, doces, bolos recheados, ficou uma mesa linda! Fizemos brincadeiras, a professora nos serviu umas bolachinhas e nos dispensou, ficamos em volta da mesa, sem entender... Fiquei pensativa, tentando compreender o estava acontecendo, com o olhar perdido no espaço... De repente, ela olhou para mim e perguntou o que estava acontecendo, se eu estava com tanta fome, podia comer! Disse num tom áspero, agressivo, enchi os olhos de lágrimas, e fazendo que não com a cabeça, sai cabisbaixa, sob olhares e risos da sala e da professora Evangelista...
Na 4ª série, tive uma professora carinhosa e tranquila, que muitas lembranças suaves deixou no meu peito, era “leiga”, mas não era leiga em amar, encantar, fazia tudo com carinho, era muito simples, um pouco gorda... Mas uma vez chamou-me de “micuim”, devido ao meu tamanho, desproporcional ao das outras meninas da sala, já exibindo protuberâncias de seios e outros vestígios de puberdade. Entretanto, o que mais me marcou foram as músicas que cantávamos, as brincadeiras, as gincanas, as apresentações nas aulas da professora Nadália.
No reino perdido do Beleléu, de Maria Heloísa Penteado, foi um dos livros infantis que marcaram minha imaginação pueril, enredo envolvente, aventura, gravuras interessantes, com traços infantis, interativas, tudo que uma criança precisa, espera e quer num livro infantil, lembro que o li umas três vezes seguida, fascinada pela leitura. No decorrer da vida, e até hoje faz parte, livro de categoria vip, da minha experiência leitora. Li para muitas turmas, de alfabetização, de quinta, sexta série. Depois parti para a série vagalume, como o mesmo nome diz “série”, li muitos, um puxava o outro...
Ligia foi uma professora delicada, muito bonita, sensível, que me valorizou com seu jeito meigo, dava redações para as 5ª séries e escolhia a melhor, divulgava para a escola, fez crescer minha autoestima. Várias vezes minhas redações foram as melhores, mas nunca esqueço de uma, que pedia para descrevermos nosso mundo ideal, soltei a imaginação, que era a única coisa verdadeiramente minha. Meu irmão reclamou que ela leu minha redação para as outras turmas – ele estudava em outra turma da 5ª série – disse em tom muito jocoso que a professora “puxava o meu saco”.
Esta valorização eu senti também em casa, com meu pai, chamava-me para ler contratos para grupos de homens em seus negócios. Exibia-me como “inteligente”, que sabia ler muito bem, tinha a letra bonita. Eu me enchia de mim mesma, embriagada com aquela doce sensação de ser importante, de ter capacidades “especiais”, era a do meio de sete irmãos, tendo três mais velhos do que eu, minha irmã mais velha e dois irmãos.
Sempre gostei de ler, ficaram gravados as sensações dos dias em que eu recebia os livros didáticos na escola, sempre pública, como eu amava quando eles eram novos, com aquele cheiro de novo... pegava-os, cheirava-os, olhava os detalhes da capa, entrecapa, lia detalhes...
Especial era o de português, pra mim não existia mais aula, nem a professora, nem os colegas, só eu e o livro, com aquele cheiro de novidades, histórias, poesias, aventuras... Olhava as gravuras, folheava, lia os títulos, escolhia um texto, depois outro, até ler o último, e voltava a ler os que tinha mais gostado, alheia a tudo que acontecia a minha volta, se as professoras percebiam, se achavam ruim, nunca disseram, eu nunca soube.
Na adolescência eu lia tudo: gibis, fotonovelas, romances água-com-açúcar, que era o que circulava com facilidade entre as garotas... Perdia a noção de tudo nos romances, tempo, espaço, eu era a mocinha, viajava, mudava, sofria, brigava, era feliz... Esquecia-me das minhas tarefas domésticas, lia escondido, à luz de velas (quase debaixo da cama para minha mãe não perceber), até altas horas da noite, simplesmente não conseguia parar, quando estava perto do final, demorava, relia os capítulos que antecediam o final, era uma doce punição. No mundo real, era reprimida, tinha dificuldades para fazer amigos, minha mãe me flagrava lendo entre uma atividade doméstica, rasgava, queimava meus romances, sempre emprestados, deixando muitas mágoas e preocupações de como devolvê-los para suas donas.
Foi nessa época que conheci duas professoras solteiras, que foram morar vizinhas da nossa casa, elas pediam para eu dar uma limpadela na casa delas, lavar a louça, fazer diário escolar... Fomos ficando amigas, elas começaram a emprestar-me alguns livros de literatura: “As pupilas do Senhor Reitor”, “A viuvinha”, “Sete minutos”, “A pata da gazela”...
Continuei então meu caminho pelo prazer de ler, que trago até hoje e que sempre foi um desafio na minha vida, no meu trabalho, fazer meus alunos gostarem de ler. Sempre será um desafio, um desafio danado de bom, que me deixa leve, solta, esperançosa, pois sempre terá uma criança com os ouvidos atentos e os olhos curiosos, vibrantes, esperando, precisando, pedindo “conta outra vez”, “lê outra vez”...
Édna Rodrigues de S. Brugnoli
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